terça-feira, 11 de agosto de 2009

tempus de histórias

pequeno almoço no bairro de stª catarina

No bairro de Santa Catarina, um pouco mais abaixo do maravilhoso miradouro que tem o nome do bairro, mantém-se viva a abertura da porta aos clientes às sete e meia da manhã. É a tasca do Mário e do Jaime que, ininterruptamente, sem Domingos ou dias santos, dá os bons dias àquele típico e central bairro lisboeta.

Naqueles 30 metros quadrados de mosaico popular, decorado com mesas quadradas de madeira e tampos de mármore, gasto pelos anos, de armários de madeira simples pintados de verde claro, com as típicas garrafas de bebidas cheias de pó que, não envelhecendo, dão aos visitantes a antiguidade do local que pisam. Quando se entra, à esquerda, encontra-se uma prateleira simples com o fatal engenho que revolucionou o mundo, comummente chamado de televisão, mesmo por cima da porta que dá acesso a um cubículo conhecido por urinol.

De frente para quem entra na tasca, por trás do balcão que se atravessa a toda a largura, está sempre, ou o Jaime ou o Mário. São dois irmãos que rondam os sessenta anos de idade. O mais velho, creio, é o Jaime, sportinguista ferrenho que tem o futebol e a vida do bairro como principais assuntos de conversa com os clientes. O Mário, benfiquista pouco falador de desporto, muito menos falador em tudo, tendo em consideração a língua de palmo e meio do Jaime, mas não deixa de dizer mal dos políticos e da sociedade em geral. Dedica-se à sua horta e à alimentação dos pombos do bairro, fazendo-lhes papas e papitas especiais para os que vão aparecendo feridos.

A horta é engraçada! É um espaço de quintal de uma casa em ruínas, desabitada, e que se encontra mesmo ao lado do edifício de princípio de século onde está a loja. Lá semeia alguns legumes, tem duas ou três árvores de fruto… e, de vez em quando, oferece aos clientes antigos, alguns dos seus produtos da horta, como uns pimentos, umas couves…

Aquela loja, ou taberna, ou mesmo venda, tem um pouco de tudo: ovos, fiambre, pão, tabaco, chocolates, rebuçados e chupas, leite…, “copos de três”, o café da ordem… e o mais afamado galão que, nos diários e repetidos comentários do Mário e do Jaime, ainda são servidos à moda antiga, com leite do dia fervido.

- Bom dia Sr. Jaime, como está?- Cai se vai… ( respondeu o Jaime)- Dê-me um galão e uma “sandes” de fiambre, por favor! Enquanto respondia ao Sr. Alexandre, já os seus passos se inclinavam para a divisão anterior ao balcão, onde tem o fogão e o leite do dia preparado com o mesmo carinho de sempre. Entretanto, o Sr. Alexandre sentava-se a um canto, procurava o “Correio da Manhã” numa das mesas e entretinha-se numa leve leitura de títulos, enquanto esperava o pequeno almoço.

Passados breves minutos, entrava o Mário. Vinha da horta com um punhado de grelos e, vendo o Sr. Alexandre, comentou:- Bons dias! Já viu estes grelos? Diga lá que não estão lindos…
- Bom dia, Mário! Realmente estão bonitos. Retorquía o cliente.
E continuava o Mário:- O senhor viu o “tempo”? A televisão disse que a chuva se mantinha durante toda a semana sem parar… isto está cá a ser um Inverno…ai Jesus! Isto de eles andarem a mexer no buraco do ozono tem muito que se lhe diga… Há quanto tempo é que se não tem um Inverno e um Verão com regularidade? Já não há memória…
- Pois é. Respondia o Sr. Alexandre. Isto está tudo a mudar…- Só o que não muda é o Futebol Clube do Porto, retorquía o Mário. Viu o que aconteceu mais uma vez? No último minuto lá o Pinto da Costa piscou o olho ao árbitro e lá veio aquele penalti.
- Lá isso é verdade. Aqueles tipos têm sempre uma sorte doida.
- Sorte! Exclamou o Mário. Se o senhor chama a isto sorte… duvida que aquilo não seja obra daquele homem? Pois eu cá não duvido.

Neste vai não vai de comentários desportivos, chegava o Jaime com a sandes e o galão e com um comentário na boca:
- Hoje o problema está nos cifrões e não no amor à camisola. Antigamente víamos os jogadores a fazer o que não podiam por uns míseros escudos. Agora, não fazem nada, não marcam golos, as pessoas desmoralizam e não vão aos estádios, pois está claro!

Nesta conversa circunstancial, entra uma senhora vestida sem cuidado, típica daquele bairro em que se mistura a aristocracia, o novo riquismo e os demais andantes populares, e diz:
- Ó Jaime, hoje só quero pão. A senhor’Ana vende o leite a menos cinco escudos o litro…
Indignado, o Jaime respondeu:
- Ah! Vende mais barato? Então porque não compras lá o pão também? É para poupares dinheiro para os do “Reino de Deus”? Andam os teus filhos aí aos “caídos”, e tu andas nessas aldrabices…

Com este comentário, a senhora saiu com a velocidade que podia, comentando para si de forma a que todos ouvissem:
-“ tens muito a ver com isso… a tua vida anda linda… E lá foi a senhora rua abaixo.
Com a saída da insólita senhora, de traços populares e brejeiros, o Jaime não perdeu tempo para comentar a forma como ela seguia a “boa nova”:
- Vejam bem! Andam os filhos aí a cair de maduros, não toma conta deles, o pai vem a casa quando lhe dá na veneta e ela, não deixa de duas ou três vezes por semana ir lá deixar o dízimo àqueles ladrões… Eles não têm culpa... Ela e os outros é que não têm juízo nenhum. Era o que mais faltava! Andamos aqui a trabalhar para sustentar larápios!…O Sr. Alexandre, sarcástico, nunca perdia um desabafo do Jaime sem meter mais uma colherada para o espicaçar:
- Ó Sr. Jaime, ouvi dizer que há uns anos atrás você andou a namoriscar a criada do Dr. Lopes Dias…
- O quê? (respondia o Jaime) Ela é que em vez de fazer o que lhe competia, arranjava desculpas aos senhores para vir para aqui fazer-me conversetas.
E mais uma vez perguntava o Sr. Alexandre:
- Que conversetas é que ela lhe fazia? Ou era você que fazia a converseta?
Respondia o Jaime:
- bem, não andamos aqui a falar sozinhos, não é? Mas a verdade é que ela era um mulherão! Não era nada para se deitar fora…
- Ah! Então sempre houve coisa…(comentava o cliente)
- Qual coisa, qual carapuça! Nunca lhe toquei… nem ela a mim! (respondia o Jaime)
- Então porquê? (Voltava à carga o cliente)
- Porque antes não era como hoje! Agora é o que se vê! Dormem com todos e os homens nem se importam!… Mas a minha filha que está a estudar para doutora tem bem noção de como são as coisas e não admito más criações e, se se comportar mal, já sabe; RUA!
Já contente com a banal conversa, o Sr. Alexandre, pagando a conta, fazia o último comentário:
- Afinal era verdade…( e ia saindo…)
O Jaime, nesse momento, ficava em brasa e quase gritava:
- Qual verdade… E que conversa será esta depois de para aí trinta anos?
Mas ficou a pensar… Talvez arrependido pelo que não fizera.

1 comentário:

Luz Santos disse...

Isto é uma delícia!
Parece que estou a ver a cena!
Há uns dois anos que não passo por lá, e se eu gosto destes bairros e destas gentes!
Boas fotos e bons escritos...!
Já tomei nota deste lugar